Quanto de nós é devido à nossa família e quanto de nós é apesar da nossa família. A família é nossa primeira comunidade e deveria ser o grupo que nos prepara para a introdução na sociedade. Nos informa dos comportamentos esperados, dos perigos a espreita e é o porto seguro em caso de ameaça. Ao menos assim deveria ser.
Mas paternidade maternidade não vem com manual de instruções e muitos pais não tem os conhecimentos necessários e nem os recursos emocionais para conseguir lidar com os filhos. É certo que [a maioria] tenta fazer o melhor com o que tem. Mas e quando tentando fazer o melhor acabamos danificando as relações com os filhos e os traumatizando a um nível patológico em que anos de terapia será necessário para tentar sanar todos os machucados.
Kiese Laymond nasceu no "Sul Profundo", no estado do Mississipi nos EUA. Um dos estados mais racistas do país, herança da história de escravidão e da Guerra Civil americana. E sendo um jovem negro e com obesidade mórbida e condições financeiras não-favoráveis, sua mãe, uma mulher com educação superior, mestrado e doutorado e muito consciente a realidade negra americana, tenta fazer o melhor para seu filho não se tornar mais um número nas terríveis estatísticas racistas do país.
Em Pesado [Que no original tem o subtítulo A memória de um americana], Kiese Laymon narra sua história em uma confissão para sua mãe. Revelando que o amor dos dois deixou muitas feridas.
- Acho que nós todos somos pessoas quebradas - eu disse. - Algumas pessoas quebradas fazem tudo o que está ao alcance delas para não quebrar outras pessoas. Se nós vamos ser pessoas quebradas, eu só fico aqui imaginando se poderíamos ser esse tipo de pessoas quebrada e também pedir ajuda sem acabar quebrando outras pessoas.
- desculpe pelo tanto que quebrei dentro de você - escutei você me dizer.
- você não me quebrou - eu respondi. Você me ajudou a me construir. E eu ajudei você a se construir. Também podemos falar com mais sinceridade sobre essas construções. è o que eu estou falando, na verdade. É o que as pessoas fazem.
p. 270
O título Pesado faz jus a história: é tanto sobre os problemas com a balança do protagonista quanto sobre as situações que ele viu e viveu: abusos sexuais, racismo, violência policial, preconceito... tudo isso narrado com uma linguagem visceral. Uma coisa que eu gostei muito foi como Kiese repete algumas estruturas durante a narração ["e ele riu, e riu, e riu, até que a risada acabou]. Em alguns momentos essa repetição de frases soa como uma promessa, uma suplica ou uma oração, de forma que deixa a narrativa realmente pesada.
Kiese teve uma mãe que sempre exigiu que ele fosse excelente, melhor que todos, porque só assim os brancos conseguiriam enxergá-lo como tolerável e digno de algum respeito. Assim, ela sempre o incentivou a escrever [revisar e reescrever] e usar a escrita como uma forma de tentar entender o mundo ao qual ele estava inserido. E quando se está preocupado em tentar fazer que seu filho não seja morto pela polícia, linchado pela comunidade branca entre outras ameaças, todo o resto é negligenciado. Afinal, em uma comunidade violenta, em uma vida miserável, cuidado básico é uma forma de amor. Tentar por comida dentro de casa é uma forma de amor. É um amor violento, talvez imperceptível quando o desejado é um toque de afeto, um cafuné, um beijo de boa noite...
NOTA: 5/5