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Camille Pissarro, Boulevard Montmartre: Morning, Grey Weather -1897 |
O HOMEM NA MULTIDÃO
(Edgar Allan Poe)
“Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul.”
La Bruyère
De certo livro germânico,
disse-se, com propriedade, que “es lässt sich nicht lesen” — não se
deixa ler. Há certos segredos que não consentem ser ditos. Homens morrem à
noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores fantasmais,
olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no coração e um aperto
na garganta, ante a horripilância de mistérios que não consentem ser
revelados. De quando em quando, ai, a consciência do homem assume uma carga tão
densa de horror que dela só se redime na sepultura. E, destarte, a essência de
todo crime permanece irrevelada.
Há não muito tempo, ao fim de
uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em
Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca
convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados
de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da
mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto,
eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que
cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O
simples respirar era-me um prazer, e eu derivava inclusive inegável bem-estar
de muitas das mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo mas inquisitivo
interesse por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo,
divertira-me durante a maior parte da tarde, ora espiando os anúncios, ora
observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua
através das vidraças esfumaçadas.
Essa era uma das artérias
principais da cidade e regurgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao
aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou, e, quando as lâmpadas se
acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta.
Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação
similar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma
emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se
passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.
De início, minha observação
assumiu um aspecto abstrato e generalizante. Olhava os transeuntes em massa e
os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci
aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras
variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão
fisionômica.
Muitos dos passantes tinham um
aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho
através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos moviam-se
rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam
sinais de impaciência; recompunham-se e continuavam, apressados, seu caminho.
Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o
rosto enrubescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se
sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava.
Quando obstados em seu avanço, interrompiam subitamente o resmungo, mas redobravam
a gesticulação e esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas
que os haviam detido passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se
cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão.
Nada mais havia de distintivo
sobre essas duas classes além do que já observei. Seu trajes pertenciam aquela
espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, nobres,
comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas — os eupátridas e os
lugares-comuns da sociedade —, homens ociosos e homens atarefados com assuntos
particulares, que dirigiam negócios de sua própria responsabilidade. Não excitaram
muito minha atenção.
A tribo dos funcionários era das
mais ostensivas, e nela discerni duas notáveis subdivisões. Havia, em primeiro
lugar, os pequenos funcionários de firmas transitórias, jovens cavalheiros de
roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem emplastado e lábios arrogantes.
Posta de lado certa elegância de porte, a que, à falta de melhor termo, pode-se
dar o nome de “escrivanismo”, a aparência deles parecia-me exato facsímile do
que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a perfeição do bon ton. Usavam
os atavios desprezados pelas classes altas — e isso, acredito, define-os
perfeitamente.
A subdivisão dos funcionários
categorizados de firmas respeitáveis era inconfundível. Fazia-se logo
reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confortáveis e práticas,
pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias
grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha
direita afastada devido ao hábito de ali prenderem a caneta. Observei que
usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar o chapéu e que traziam relógios
com curtas correntes de ouro maciço, de modelo antigo. A deles era a afetação
da respeitabilidade, se é que existe, verdadeiramente, afetação tão
respeitável.
Havia muitos indivíduos de
aparência ousada, característica da raça dos batedores de carteiras, que
infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita curiosidade e achava
difícil imaginar que pudessem ser tomados por cavalheiros pelos cavalheiros
propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas, assim como o ar de
excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para denunciá-los de imediato.
Os jogadores — e não foram
poucos os que pude discernir — eram ainda mais facilmente identificáveis.
Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de veludo, o lenço fantasia ao
pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do mais desatinado e
trapaceiro dos rufiões às vestes escrupulosamente desadornada dos clérigos,
incapazes de provocar a mais leve das suspeitas. Não obstante, denunciava-os
certa tez escura e viscosa, a opacidade dos olhos, assim como o palor e a
compressão dos lábios. Havia, ademais, dois outros traços característicos que
me possibilitavam identifica-los: a voz estudadamente humilde e a incomum
extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes,
em companhia desses velhacos, observei outra espécie de homens, algo
diferentes nos hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante.
Podiam ser definidos como cavalheiros que viviam à custa da própria finura. Ao
que parecia, dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público: de
um lado, os almofadinhas; de outro, os militares. Os traços distintivos do
primeiro grupo eram o cabelo anelado e o sorriso aliciante; o segundo grupo
caracterizava-se pelo semblante carrancudo e pela casaca de alamares.
Descendo na escala do que se chama
distinção, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias.
Encontrei judeus mascates, com olhos de falcão cintilando num semblante onde
tudo o mais era abjeta humildade; atrevidos mendigos profissionais hostilizando
mendicantes de melhor aparência, a quem somente o desespero levara a recorrer à
caridade noturna; débeis e cadavéricos inválidos, sobre os quais a morte já
estendera sua garra, e que se esgueiravam pela multidão, olhando, implorantes,
as faces dos que passavam, como se em busca de alguma consolação ocasional, de
alguma esperança perdida; mocinhas modestas voltando para seus lares taciturnos
após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais chorosas que
indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contato direto, não
obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda idade: a
inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano,
feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a repugnante
e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de jóias,
exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de
formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera
adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por
igualar-se, no vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e
indescritíveis; uns, esfarrapados, cambaleando inarticulados, de rosto
contundido e olhos vidrados; outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, de
lábios grossos e sensuais, e face apopleticamente rubicunda; outros, ainda,
trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido elegantes e que, mesmo
agora, mantinham escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo
firme, mas cujo semblante se mostrava medonhamente pálido, cujos olhos estavam
congestionados e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por
entre a multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além desses
todos, carregadores de anúncios, moços de frete, varredores, tocadores de
realejo, domadores de macacos ensinados, cantores de rua, ambulantes, artesãos
esfarrapados e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies — tudo isso
cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente os
ouvidos e provocando-nos uma sensação dolorida nos olhos.
Conforme a noite avançava,
progredia meu interesse pela cena. Não apenas o caráter geral da multidão se
alterava materialmente (seus aspectos mais gentis desapareciam com a retirada
da porção mais ordeira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergiam com
maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todas as
espécies de infâmias), mas a luz dos lampiões a gás, débil de início, na sua
luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascendência, pondo nas
coisas um brilho trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido — como
aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano.
Os fantásticos efeitos de luz
levaram-me ao exame das faces individuais, e, embora a rapidez com que o mundo
iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela
furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstante, que, no meu peculiar estado de
espírito, eu podia ler freqüentemente, mesmo no breve intervalo de um olhar, a
história de longos anos.
Com a testa encostada ao vidro,
estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subitamente, deparei com
um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade),
um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a
absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe
assemelhasse, nem de longe. Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao
vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzsch, e não haveria de querer outro
modelo para as suas encarnações pictóricas do Demônio. Enquanto eu tentava,
durante o breve minuto em que durou esse primeiro exame, analisar o
significado que ele sugeria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no meu
espírito, as idéias de vasto poder mental, de cautela, de indigência, de
avareza, de frieza, de malícia, de ardor sanguinário, de triunfo, de
jovialidade, de excessivo terror, de intenso e supremo desespero. Senti-me
singularmente exaltado, surpreso, fascinado. “Que extraordinária história”,
disse a mim mesmo, “não estará escrita naquele peito!” Veio-me então o
imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre
ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu e a bengala, saí
para a rua e abri caminho por entre a turba em direção ao local em que o havia
visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de
algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-me dele e
segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção.
Tinha agora uma boa oportunidade
para examinar-lhe a figura. Era de pequena estatura, muito esguio de corpo e,
aparentemente, muito débil. Suas roupas eram, de modo geral, sujas e
esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasionalmente, sob algum foco de luz,
eu podia perceber que o linho que trajava, malgrado a sujeira, era de fina
textura, e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance
através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de segunda mão, que
ele trazia abotoada de cima a baixo, de um diamante e de uma adaga. Essas
observações aguçaram minha curiosidade, e decidi-me a acompanhar o estranho
até onde quer que ele fosse.
Era já noite fechada, e
uma neblina úmida e espessa, que logo se agravou em chuva pesada, amortalhava a
cidade. Essa mudança de clima teve um estranho efeito sobre a multidão, que
logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A
agitação, os encontrões e o zunzum decuplicaram. De minha parte, não dei muita
atenção à chuva; uma velha febre latente em meu organismo fazia com que eu a
recebesse com um prazer algo temerário. Amarrando um lenço à boca, continuei a
andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu caminho, com dificuldade, ao
longo da grande avenida; eu caminhava grudado aos seus calcanhares, com medo de
perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de
minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa que, embora
repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara.
Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais
lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação,
dir-se-ia. Atravessou e tornou a atravessar a rua repetidas vezes, sem
propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento
seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada, e
ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de
transeuntes havia gradualmente decrescido, tornando-se o que é ordinariamente
visto, à noite, na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença
entre a população de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um
desvio de rota levou-nos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante
de vida. As antigas maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe
sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam inquietos, sob o cenho franzido,
em todas as direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre
a multidão com firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver que, tendo
completado o circuito da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal
acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo
circuito diversas vezes; quase que deu comigo, certa vez em que se voltou com
um movimento brusco.
Nesse exercício gastou mais uma
hora, ao fim da qual encontramos menos interrupções, por parte dos transeuntes,
que da primeira vez. A chuva continuava a cair, intensa o ar tornou-se frio; os
passantes se retiravam para suas casas. Com um gesto de impaciência, o estranho
ingressou num beco relativamente deserto. Caminhou apressadamente, durante
cerca de um quarto de milha, com uma disposição que eu jamais sonhara ver em
pessoa tão idosa; grande foi a minha dificuldade em acompanhá-lo. Alguns
minutos de caminhada levaram-nos a uma grande e ruidosa feira, cujas
localidades pareciam bastante familiares ao estranho, e ali ele retomou suas
maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem propósito
definido, por entre a horda de compradores e vendedores.
Durante a hora e meia,
aproximadamente, que passamos nesse local, foi-me mister muita cautela para
seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava galochas e
podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento ele percebeu que
eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de artigo algum
nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos com um
olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente
intrigado com o seu modo de agir e firmemente decidido a não me separar dele
antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu respeito.
Um relógio bateu onze sonoras
badaladas, e a feira começou a despovoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar
um postigo, deu um esbarrão no velho, e, no mesmo instante, vi um
estremecimento percorrer-lhe o corpo. Ele saiu apressadamente para a rua e
olhou ansioso à sua volta, por um momento; encaminhou-se depois, com incrível
rapidez, através de vielas, umas cheias de gente, outras despovoadas, para a
grande avenida da qual partira, a avenida onde ficava situado o Hotel D...
Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Estava ainda
brilhantemente iluminada, mas a chuva caia pesadamente e havia poucas pessoas a
vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos pela antes
populosa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção do rio.
Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por fim
diante de um dos teatros principais da cidade. Este estava prestes a fechar, e
os espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por
falta de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa agonia
do seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o
peito novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia
agora o caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de modo geral, não
conseguia compreender a inconstancia de suas ações.
Enquanto caminhava, o número de
transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude e vacilação voltaram a aparecer.
Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões;
mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos
componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco freqüentada. O estranho
se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes
sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas um itinerário que nos levou aos
limites da cidade, para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então
atravessado. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca
da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. A débil luz
das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já
roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruinados, dispostos em tantas e
tão caprichosas direções, que mal se percebia um arremedo de passagem por entre
eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas, arrancadas de seu leito
original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se desprendia
dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme
avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim deparamos com grandes
bandos de classes mais desprezadas da população londrina vadiando de cá para
lá. O ânimo do velho se acendeu de novo,
como uma lâmpada bruxuleante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico.
Subitamente ao dobrarmos uma esquina, um clarão de luz feriu-nos os olhos e
detivemo-nos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança: um dos
palácios do demônio Álcool.
O amanhecer estava próximo, mas,
não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada
da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o velho forçou a passagem e, uma
vez dentro do salão, retomou suas maneiras habituais, vagueando, sem objetivo
aparente, por entre a turba. Não fazia, porém, muito tempo que se ocupava nesse
exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender
que o proprietário da taverna resolvera fechá-la por aquela noite. Era algo mais
intenso que desespero o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura
singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não
hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de volta para o
coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o
seguia, cheio de espanto, mas decidido a não
abandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos
interesses. Enquanto caminhávamos, o sol nasceu, e quando alcançamos novamente
a mais populosa feira da cidade, a rua do Hotel D..., esta apresentava uma
aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu
presenciara na véspera. E ali, entre a confusão que crescia a cada momento,
persisti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a
caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da
avenida. Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me
mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto.
Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da
perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se.
“Este velho”, disse comigo, por
fim, “é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem
da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a
respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o
Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que ‘es lässt
sich nich lesn’ ”.
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